Confusão do fato, a doutrina mensaleira
Petistas tentam creditar condenações à teoria alemã do domínio do fato.
Mas não é a doutrina que levará Dirceu e companhia à cadeia. É a fartura de
provas, a convicção da maioria do Supremo – e o rigor do Código Penal
Daniel Jelin
O ex-ministro José Dirceu
terá de se conformar mais cedo ou mais tarde: não deve sua condenação à
doutrina jurídica que Ricardo Lewandowski tomou por 'controvertida' e 'antiga',
e petistas,
por 'superada', 'nascida na Alemanha nazista' e 'atualizada na Guerra Fria'. O
que levará o chefe do mensalão à cadeia não são teorias, mas provas.
A tese do domínio do fato, fixação jurídica de petistas, não tem nada com isso.
Considere o
exemplo hipotético: o poderoso A manda B autorizar C a pagar D e E, por
intermédio de F e G, com o dinheiro que H desviou dos cofres públicos para a
conta de C e seu sócio I, sob a proteção de J e K, que têm interesse em agradar
A, B e C em troca de favores que possa obter de L, que não sabia de nada...
Afinal, quem é a figura central da trama? Quem é coautor? Quem é mero
partícipe? É disto que tratam diversas teorias à disposição das cortes na hora
de pesar a responsabilidade de cada réu.
Domínio do
fato é uma dessas teses. Por ela, dá-se o status de autor ao sujeito que tem o
controle da empreitada criminosa, ainda que outras pessoas sujem as mãos em seu
lugar. Parece banal, mas não é este o resultado a que chegam outras
teorias, como a que toma por autor apenas o sujeito do 'verbo núcleo' do tipo
penal (o que 'mata', 'ofende', 'falsifica' etc.) ou a que considera partícipe
quem demonstra 'vontade de partícipe', independente da gravidade de sua
conduta. Ao invocar esta ou aquela doutrina, o que se pretende é evitar aberrações
como a condenação de um laranja a uma pena mais dura que a do mentor do crime
ou o abrandamento da punição de um assassino que alega apenas cumprir uma ordem
superior.
É vasta e
complexa a literatura sobre o conceito de autor. De toda maneira, qualquer
que seja a doutrina abraçada pela corte, só se pesa a responsabilidade de um
criminoso após a comprovação de que o sujeito tomou mesmo parte do crime.
"Somente a invocação da teoria não tem o condão de dar fundamento a
um juízo de condenação", explicou o decano do STF, Celso de Mello.
Por isso,
tanto nos argumentos da Procuradoria-Geral da República como no voto do
ministro Joaquim Barbosa, o domínio do fato é uma rápida passagem da
fundamentação teórica, sem jamais fazer as vezes de elemento-chave de convicção.
Ao pedir a condenação dos réus, o Ministério Público se apoia é no Código
Penal, em particular seu artigo 29: "Quem, de qualquer modo, concorre para
o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua
culpabilidade". E Barbosa, ao dosar a pena dos chefes do esquema,
ampara-se no artigo 62, que agrava a punição para quem "promove, ou
organiza a cooperação no crime ou dirige a atividade dos demais
agentes". Em qualquer caso, condenação exige provas. Acusar a mais
alta corte de dispensá-las no caso do mensalão é só desatenção. Ou má-fé.
A confusão
começou com o voto de Lewandowski sobre a acusação de corrupção ativa contra
Dirceu. O revisor do processo guardou suas considerações sobre domínio do fato
para encerrar seu longuíssimo voto. Nele, acusou o Ministério Público de
usar a doutrina como uma muleta retórica para compensar o que chamou de
'absoluta e total carência de provas' contra o ex-ministro. Em amarga
intervenção, ao final da qual absolveria o chefe da quadrilha, Lewandowski
disse que o domínio do fato dá margem a especulações, temeu pelo mau uso da doutrina
em outras cortes e citou seu professor do ginásio para lamentar a importação de
'movimentos intelectuais' com 50 anos de atraso.
O revisor foi logo refutado por outros ministros, em particular
Ayres Britto, Luiz Fux e, de forma esmagadora, Celso de Mello. Em detalhada
fundamentação, o decano traçou as origens da teoria
desde a Alemanha de 1915, passou por seu marco fundador, em 1939, e ocupou-se
longamente da abordagem seminal do alemão Claus Roxin, em 1963. São essas datas
que levaram o PT a falar em doutrina 'nascida na Alemanha nazista' e
'atualizada em plena Guerra Fria'. O que o partido omite é que a teoria é
justamente o arcabouço que autoriza a condenação exemplar de um carrasco
nazista. Ou seja, omite o principal.
Para desenvolver a teoria
do domínio do fato, Roxin inspirou-se no caso de Adolf Eichmann, oficial
nazista encarregado da logística do Holocausto – o mesmo carrasco que levou
Hannah Arendt (1906-1975) a cunhar a expressão 'banalização do mal'. O
interesse de Roxin estava justamente em fundamentar uma doutrina que alcançasse
o criminoso que não suja as mãos, para tratá-lo como autor, não cúmplice.
Capturado na Argentina e julgado em Israel, Eichmann foi executado, na forca,
em 1962. A obra Autoria e domínio do fato saiu logo no ano seguinte.
Segundo a
formulação de Roxin, autor é quem tem o domínio do fato, e este pode ser
exercido tanto pelo domínio da própria ação, que é o caso mais comum (quando o
assassino decide apertar o gatilho, por exemplo) como pelo chamado 'domínio da
vontade' (por coação, por exemplo). Ao desenvolver esta segunda modalidade de
domínio do fato, Roxin chegou a um caso particular e bastante original: o
‘domínio por meio de um aparato organizado de poder'. Esta vertente fez fama em
diversas cortes, desde a alemã, para julgar os crimes ocorridos na Alemanha
Oriental, até a argentina, no caso do ditador Jorge Rafael Videla, e a peruana,
no processo contra o ex-presidente Alberto Fujimori. (Supõe-se que a militância
de esquerda não veja absurdo nessas condenações).
E aqui a
doutrina se cruza com o caso do mensalão. Esses "aparatos de poder"
são descritos como estruturas hierárquicas à margem da lei, com poucos
dirigentes e muitos subordinados. Nestes casos, os executores, que estão na
ponta final da linha de comando, são facilmente substituíveis ("fungíveis")
e nem é necessário que todos se conheçam. Ao longo dessa estrutura
verticalizada, quanto mais nos afastamos da cena do crime, tanto maior – e não
menor – é a responsabilidade do agente. E é bem disso que trata o processo
do mensalão: 'uma grande organização que se constituiu à sombra do poder,
formulando e implementando medidas ilícitas que tinham por finalidade a
realização de um projeto de poder', conforme a síntese de Celso de Mello.
'Estamos a tratar de uma hipótese de macrodelinquência, e em situações assim é
plenamente aplicável a teoria (do domínio do fato)."
No mesmo voto,
Mello afastou as insinuações de que o STF estivesse inovando ao acolher esta
doutrina. Lembrou que a tese é absolutamente compatível com as leis brasileiras
e já vem sendo aplicada - e bem aplicada - tanto em instâncias inferiores como
no próprio Supremo.
A teoria do
domínio do fato volta a cruzar o caminho do mensalão em outra modalidade
descrita por Roxin, a do 'domínio funcional do fato'. Aqui, trata-se por
coautores aqueles que, em ação orquestrada, realizam cada qual uma certa tarefa
imprescindível para o êxito de determinada empreitada. Esta vertente foi
lembrada nos votos de Joaquim Barbosa e de Luiz Fux. Também por esta teoria, o
que se pretendeu foi negar o status de mero partícipe a Dirceu e Valério, entre
outros réus. “Valério e seus sócios foram a 'longa manu’ daqueles que
idealizaram politicamente a patrimonialização do estado”, disse Fux.
Até o início do julgamento, Roxin e sua doutrina passaram longe
das preocupações dos mensaleiros. Nas alegações finais, são raras e breves as
referências à teoria. As poucas citações tentam levar os ministros do STF a
crer que os réus não tinham domínio qualquer dos fatos. É o caso de Simone
Vasconcelos, que tentou passar por mera "executora das determinações"
de Valério e dos sócios Cristiano Paz e Ramon Hollerbach. "Se alguém há de
ser reputado como detentor do domínio sobre os fatos, seriam os sócios". A
defesa de Geiza Dias alegou algo próximo: não tinha nem o domínio, nem o conhecimento
“das intenções e dos atos praticados pelos diretores da empresa SMP&B”. Simone foi
condenada a
mais de 12 anos. Geiza foi
inocentada. O que determinou a sorte de cada uma não
estava no âmbito da doutrina, mas nas provas: Geiza, a “funcionária
mequetrefe” com
“salário de doméstica”, preenchia cheques e passava e-mails, enquanto Simone,
diretora da agência, cuidava pessoalmente para que o dinheiro chegasse aos
mensaleiros, valendo-se até de carro-forte.
Os mensaleiros podem até consultar Roxin em pessoa, como foi noticiado
e depois desmentido, para saber se suas teses foram
bem ou mal esgrimidas em plenário. Poderão de quebra conhecer outra tese famosa
desenvolvida por Roxin, o princípio da insignificância, bastante aplicado em
tribunais brasileiros para os chamados crimes de bagatela – ao que consta,
nenhum mensaleiro chegou ao ponto de invocá-lo. Só não poderão contornar a
fartura de provas que convenceram a maioria do Supremo a culpar 25 réus do processo.
Reportagem veiculada pela revista Veja (acervo digital) 25/11/2012.
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